Anderson
Morais
COM QUANTAS PALAVRAS SE FAZ UM CORPO?
Eduardo Bruno e Waldirio Castro
Em um campo filosófico da imagem, Didi-Huberman , em seu livro: Sobrevivência dos Vaga-lumes, nos apresenta dois conceitos: imagem holofote e imagem vagalume. Nessas poucas linhas que compõe esse texto sobre da curadoria que realizamos da exposição “Com quantas palavras se faz um corpo?” de Anderson Morais, não teríamos como resenhar esses dois conceitos por completo. Contudo, os trazemos para indicar os caminhos que seguimos para pensar o local da penumbra e o semiescuro que apostamos em construir, como forma de não trazer para a total luz iluminista ao campo dinâmico do desejo.
Nossas vivencias no mundo são da ordem do movimento, caminhamos enquanto dançamos por entre as verdades estáveis construídas por uma sociedade calcada em uma percepção de corpo-mundo colonial. Sobre as luzes das imagens holofotes os discursos se encarnam nos corpos esgotando os gestos e os movimentos possíveis da vida. Uma biopolítica que faz desaparecer os espaços de penumbra. Com tanta luz, o sumiço dos vaga-lumes parece inevitável, aniquilados pela falta de noite, pela falta de escuridão. Foi/é na luz-holofote, iluminista e cristã que nos é apontado o caminho do desejo. O desejo possível.
Essa rápida divagação a partir das escritas de Didi-Huberman, nos dá um certo espaço importante, e inicial, para o rizoma que juntos: curadores e artista propomos criar para a exposição “Com quantas palavras se faz um corpo?”. Em seus desenhos Anderson compartilha por meio de linhas, pontos e formas seus desejos, olhares, afetos e provocações, principalmente homoafetivo e homoerótico. O mesmo ocorre com a utilização do bordado que, por meio de pontos e linhas, mediadas por agulha e tecido, o artista cria diversas silhuetas do que, comummente, seria identificado enquanto corpos masculinos. Uma outra camada, também, inserida por meio do bordado são as palavras, que compartilham, de forma mais direta, aforismas produzidos, desde referências literárias a textos encontrados em cinemas pornô. Já na pintura, podemos identificar o exercício de criar imagens com cores contrastantes em uma poética homoerótica que propõem profanações com cânones religiosos. Por ser uma bixa-artista-professor que mora em Sobral-CE, uma cidade historicamente conservadora, boa parte da produção mais “explicita” de Anderson ficava restrita ao seu ateliê. Infelizmente não é incomum que artistas com uma produção desviante, relacionada as questões de gênero, sexualidade e corporalidade passem por um processo de autocensura, seja por medo de uma possível retaliação, seja pela dificuldade de as instituições culturais acolherem os trabalhos. Foi assim, que talvez, por uma tentativa de andar em legião que o artista nos convidou para formularmos exercícios de fuga do mundo cis-hetero-masculino e circular com sua produção nos espaços institucionais. Sendo assim, foi com a aprovação no edital TAC – 2022/2023 (Temporada de Arte Cearense) que, por meio de um desvio, surge a oportunidade de apresentarmos um outro recorte da produção poética de Anderson no Museu de arte contemporânea do Ceará.
Não nos detendo, apenas, o que anteriormente estava escrito no projeto contemplado, começamos a projetar a exposição “Com quantas palavras se faz um corpo?”. Um processo curatorial mediado por uma relação horizontal entre artista e curadores, em um constante diálogo entre a produção poética e as provocações conceituais, expográficas e de produção da exposição. Em nossa visita ao “ateliê 156”, espaço onde Anderson vem produzindo seus trabalhos e também criando diversas atividades, oficinas, palestras, com diversos artistas de sua cidade, nos deparamos com uma enorme produção. Como já foi dito, Anderson tem permeado por diversas técnicas e, neste sentido, o diálogo entre as visualidades geradas por elas, foi um primeiro caminho para que pudéssemos conversar a respeito de sua produção.
Mais do que simplesmente escolher as obras e selecionar quais delas ficarão penduradas na parede, acreditamos em uma curadoria também enquanto espaço de criação junto ao artista. Por ter uma produção vasta, fomos encontrando quais visualidades dialogavam umas com as outras, e provocando Anderson a refletir acerca de questões como: Quais corpos/silhuetas masculinas estão sendo reproduzidas? Como questionar as relações entre o desejo e os padrões corporais impostos socialmente? Como introduzir, em sua produção, uma discussão acerca dos tensionamentos entre o desejo e as questões de raça? Como ampliar a leitura visual dos corpos apresentados para além de um corpo cisgênero?
Tais questionamentos são construídos por meio de uma relação crítica a partir de conceitos importantes como gênero, sexualidade e corporalidade trazidas sobretudo em um referencial teórico dos estudos queer, cuir, kuir, transviados etc. Uma série de autores, artistas e coletivos que vem se debruçando em problematizar e criar alternativas fugidias a lógica da normatividade hegemônica cis-hetero-masculina.
Materializar uma produção poética no recorte da homoafetividade/homoerotismo pode ser uma oportunidade de ampliar e estabelecer, de forma crítica, diálogos acerca do modo que construímos o desejo. Portanto, tensionar a produção imagética do artista, no que diz respeito as suas representações masculinas, é também tensionar os imaginários edificados por meio de uma estrutura machista e homofóbica que, pode ser reproduzida de forma consciente ou inconsciente, também pela comunidade LGBTQIAPN+.
Parte da produção de Anderson, foi construída a partir de visitas a cinemas pornôs de diversas cidades do Brasil. Espaços estes que são conhecidos por suas possibilidades de expressão de desejo, sexualidade e afetividade, principalmente por corpos excluídos pela hegemonia sexopolítica. Certamente que tais espaços não são totalmente independentes das questões hegemônicas construídas fora deles. Contudo, tomá-lo como um tensionamento, pareceu ser uma potente aposta para a curadoria e expografia da exposição. Sendo assim, os desenhos mais erótico-pornográficos do artista foram escaneados e transpostos para uma TV de tubo, construindo uma espécie de um vídeo pornográfico, como os que passam em cinemões. Tal TV, foi colocada em uma cabine preta, sendo necessário um acesso por uma entrada em tecido que fazia o visitante que estivesse dentro, não ser visto por quem estava fora. Em nossos contatos pessoais, diversas foram as mensagens que recebemos de casos de atos sexuais realizados no interior da cabine. O gozo dentro do espaço higiênico do Museo, atropelou os possíveis para os corpos e narrativas historicamente impostas a este local.
Ainda, no espaço expositivo, construído em sua maioria por pouca luz, outra ilha da exposição, que eram no total de três, parece ser pertinente destacar. Essa outra ilha era composta pela presença de bordados homoeróticos em tecido vermelho sobre uma parede vermelha. Para vê-los, era necessário aproximar-se, exigindo, com isso, afirmar a curiosidade. Ainda nessa mesma ilha, uma mesa servia um banquete de pratos vazios pintados com partes de corpos masculinos nus. Um banquete do desejo que caminhava por diversas partes do possível erótico do corpo, juntamente a um caminho de mesa bordado com frases diversas sobre afeto e sexualidade. Na terceira ilha, havia duas pinturas: uma da figura religiosa/erótica de São Sebastião e outra figura com rosto mascarado pousando de pernas abertas e de forma relaxada, mas tendo sua genitália escondida por uma espada de São Jorge.
Com tudo isso posto, podemos retomar o nome da exposição para fazermos uma dobra sobre ela mesma. Neste exercício, poderíamos recriar de diversas formas o título da exposição e por consequência desse texto, trazendo perguntas como: é possível construir um corpo só com palavras? Considerando a semântica da palavra, unidade linguística dotada de sentido, podemos esgaçar seu conceito e pensar nas potencias do não dito? Se com a palavras historicamente se nomeou o corpo, como desnorteá-las?
Sendo assim, afinal: com quantas palavras, movimentos, sons, narrativas, imagens e penumbras se faz um corpo?
Avesso
Jacqeline Medeiros
Tanto o bordado quanto a costura são práticas que, em nossa cultura, estiveram restritas, durante séculos, ao ambiente familiar, à casa, às mulheres e às crianças. Os bordados de Anderson, na exposição Avesso, apresentam essa tradição íntima da casa. São casais que não estão em paisagens urbanas ou campestres, mas bordados em espaços vermelhos de lenços, e vistos do alto. Em outros, palavras dão mais pistas do ambiente seguro e de afeto do lar.
A série aqui apresentada foi inspirada na tradição portuguesa dos Lenços dos Namorados, com textos e desenhos. Era hábito das moças apaixonadas, em busca de concretizar o namoro, bordarem seu lenço e entregá-lo ao amado. Caso o pretendente aceitasse o namoro, usava o lenço publicamente. Há textos que supõem sua origem nos séculos XVII – XVIII.
No campo das artes visuais, o início do século XX é marcado com a escola Bauhaus, que trás consigo uma vontade de unir a arte e o artesanato em torno da criação de objetos que aliassem beleza à funcionalidade. No Brasil, os povos indígenas trançam seus grafismos, o que não deixa de ser um bordado, e os povos afrodescendentes bordam suas indumentárias dos cultos dos candomblés.
Diante de tanta ancestralidade, Anderson convive em um ambiente envolvido em linhas, tecidos e costuras. A avó ensina os primeiros pontos e seu companheiro, que trabalhava com o universo do bordado na cidade de Taperuaba, local com muitas fábricas, estimulá-la a levar alguns pontos para seu trabalho que, até então, eram desenhos. No entanto, o bordado livre o capturou visitando imagens das obras de arte do artista cearense Leonilson, de Artur Bispo do Rosário e uma exposição com trabalhos de Rodrigo Morgiz, no Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza.
Anderson, ao longo de sua atividade artística, trata de questões do universo íntimo com um discurso amoroso. Na série Avesso (ou o que não se quer mostrar), declara seu amor sobre lenços, com cenas que se libertam no ambiente da casa, no aconchego, na mesa, na cama. Com palavras de forma direta e ao mesmo tempo subjetiva, alinhava afetividade, com desejos de extrapolar os limites íntimos da casa.
FALO DE MUITOS CAMINHOS
Filipe Chagas
Curador / editor revista falo
A linha parece ser o caminho expressivo de Anderson Morais. Através dela, o artista transita entre diversas linguagens artísticas – seja desenho, pintura, bordado ou mesmo instalação – para criar uma poética própria que fala de corpo, desejo, sexualidade e afeto, sempre buscando a naturalidade com que esses temas deveriam ser tratados. Em inúmeras mídias não-tradicionais como guardanapos, páginas de livro, pratos e lambes, aplica seu traçado que simplifica as formas e transmite diretamente a mensagem, enquanto seu jogo cromático cria espaços e capta o espectador. Até mesmo a palavra se torna linha para perguntar “Com quantas palavras se faz um corpo?”.
O artista revela que seu processo criativo passou por várias fases e técnicas enquanto crescia. Chegou a trabalhar paisagem e abstracionismo, até que, em 2010, representou um beijo gay e passou a conhecer outros artistas que estavam desenvolvendo as mesmas questões. Os relacionamentos amorosos se tornaram uma direção imagética, fosse a partir de suas próprias histórias ou daquelas vindas das redes sociais. Claro que já sofreu com a onda conservadora que tem assolado o país (e o mundo!) – em 2018, foi alvo de uma tentativa de agressão em uma vernissage por causa de uma série de desenhos sobre o afeto entre dois homens.
Também em 2018, eu lancei a revista Falo Magazine, a primeira e única publicação científica online e gratuita sobre Arte e Nudez Masculina. No ano seguinte, Anderson entrou em contato através das redes, mas somente em 2021, ele submeteu seu portfólio para que eu ficasse conhecendo sua produção artística, que possui o corpo masculino como objeto central sem receios de mostrar o pênis ou o sexo. Coincidentemente, eu estava com uma nova coluna na revista, onde artistas e curadores falavam sobre o trabalho de outros artistas, e resolvi cruzar o caminho deste nordestino de Sobral, no Ceará, com o de Rafael Dambros, artista de Caxias do Sul que também utiliza a linha como ferramenta expressiva para uma temática do corpo, especialmente, o corpo LGBTQIA+.
Todo esse contexto me levou a convidá-lo para participar da exposição “Além da Parada” em 2022, uma mostra que aconteceu junto ao retorno presencial da maior Parada LGBTQIA+ em São Paulo, após o isolamento pandêmico. Em um ano eleitoral de uma acirrada disputa de poderes polarizados, onde a sobrevivência de muitos estava em cheque, a exposição desejava não só quebrar paradigmas, mas também dar visibilidade aos artistas que estão enfrentando censura e discursos de ódio há mais tempo do que se imagina. O trabalho plasticamente instigante e essencialmente inteligível de Anderson se afinou com a proposta curatorial que criei. Como não podia ser diferente, o convidei novamente em 2023 para a sequência da exposição, “Muito Além da Parada”. Seus encontros em narrativas gráficas eram a linguagem certa para um novo porvir de livres interpretações.
Não acho que sejamos capazes de enquadrá-lo em um estilo artístico. Naif, expressionista, pop… Categorias que acabam limitando um artista de formação múltipla, que vai de História e Artes Visuais a Música e Gestão Cultural. Com várias exposições e premiações em sua trajetória artística, Anderson se mantém atento às discussões relevantes que conseguem ampliar suas inspirações e o colocam na frente da luta contra a ignorância e o fundamentalismo.
... como pássaros
Cecília Bedê
Um rosto encoberto pelo braço, ao redor da cabeça uma luz amarela e em torno do tronco
nu, pássaros. A etiqueta indica: é “Um rapaz com pássaros”. Assim inicia-se um dos
percursos possíveis por uma das salas expositivas do Museu de Arte Contemporânea do
Ceará do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, ocupada pela exposição “Com quantas
palavras se faz um corpo?” do artista Anderson Morais.
Sustentada pelos diversos formatos de instalações e suportes, onde o trabalho de Anderson
se apresenta, a questão que dá nome à exposição composta por desenho, pintura, vídeo e
bordado, joga com a ideia de pergunta e resposta. O caminhar pelo espaço se torna busca,
caça palavras por entre os corpos que vemos em telas, tecidos, pratos. Os corpos e suas
partes, compõem um espectro afetivo - suspirante, em encontros com outros corpos, em
homoafetividade, dando às cenas, a naturalidade de seus acontecimentos.
As palavras pensadas são muitas, tantas: fome, amor, tesão, corpo, sede, silêncio, arrepio.
Desiderium - é a palavra em latim bordada em um caminho de mesa vermelha, que significa
algo entre desejo e saudade e que materializa a ideia de realização de algo ausente. Onde
tudo acontece. As imagens agenciam liberdade e nos permitem olhar, se quisermos. Se
quisermos e porque é desejante que assim seja, que os corpos ilustrados e os corpos
visitantes diante das obras de Anderson sejam livres, não só “com”, mas principalmente
“como” os pássaros.